18.12.08

Notas sobre Cuba

Hoje faz um mês que voltei de Cuba, e ainda agora não sinto as coisas devidamente organizadas na cabeça e no coração. É difícil escrever de maneira coerente quando as experiências ainda reverberam no peito.

Pensei, então, que eu poderia explicar Cuba falando das noites ruidosas e sem luz de Regla, da lancha de travessia até Havana, das agitadas noites da EICTV, com música, boas conversas, confissões e “películas”, da hospitalidade sem julgamentos (mas nem sempre desinteressada), da música cubana que resiste, das “guaguas llenas”, do sol e do tempo úmido, das “calles” da cidade de Bejucal, do Malecón, da incrível capacidade do povo de se reinventar todos os dias, do sincretismo cubano, brasileiro, latino-americano, das amizades...



Ou quem sabe se eu falasse da sensibilidade de Cortázar, da fúria de Santiago Alvarez e da fluidez de Tomás Gutiérrez Alea, três cineastas Cubanos excepcionalmente coerentes com a realidade latino-americana, com Cuba, com seus anseios, consigo mesmos... ou tentasse explicar como meus anseios de cinema mudaram, ou se reorganizaram...

...e se descrevesse as ruas energizadas pelos “Paleros” e seguidores da Regla de Ocha, o cheiro do Congri, os tambores da Conga, a simpatia excessiva dos homens, os carros antigos, as imensas filas para fazer qualquer coisa, os sorrisos...

Talvez se descrevesse Yosiri, Rafaela e Edgar Mariano. Três gerações, três corações que me acolheram, e abriram a porta de uma Cuba só deles.

Ainda que eu explicasse em detalhes cada uma dessas coisas, estaria longe de ser explícita e objetiva. Para os que já me encontraram pessoalmente, contei e recontei as anedotas sobre comidas, pessoas, hospitalidades e aventuras. Contei das dificuldades, e de alguns triunfos e tropeços do socialismo da ilha. Mas jamais conseguirei explicar a magia que é fazer parte de tudo isso. Nenhuma expectativa supera o que se encontra de verdade.

Se tive alguma decepção, talvez tenha sido com o curso de documentário que fui fazer, objetivo principal da viagem. De toda forma, trocar idéias foi a parte essencial de tudo. Troquei filmes, músicas, vivências, visões, sentimentos e vontades. E justamente conhecer Cuba, que era um desejo antigo mas não o foco da empreitada, foi o que fez tudo tomar cores ainda mais vivas.



A idéia inicial era viajar 10 dias depois do término do curso. Havia levado dicas diversas, mas tinha apenas a certeza de que não queria fazer turismo convencional. O que aconteceu foi que ganhei de presente do curso uma amiga eterna, que fez questão de ser minha anfitriã nesses dias finais. Yosiri, uma cubana cheia de sonhos e de estratégias, que me acolheu 10 dias no seu reino particular em Regla, um município dentro de La Habana onde se chega rapidamente de barco.

Reinam com ela Edgar Mariano, um muchachito muy esperto, que aos 12 anos tem vontades grandiosas de independência, principalmente a dele em relação a sua mãe, Yosiri. E Rafaela, a costureira talentosa, avó de Edgar, que defende ferrenhamente a revolução que mudou para melhor muitas coisas em sua vida. Yosiri é o ponto de equilíbrio, que concilia com força e doçura as vontades extremas da mãe e do filho, e que levanta todos os dias com a convicção e o desejo de fazer o melhor trabalho.





Ela dirige um programa de documentários na TV Educativa, e é uma enciclopédia de filmes... aliás, minha verdadeira professora de cinema em Cuba. O olho dela brilha quando descreve os filmes que assistiu ou explica as razões que a fascinam nessa ou naquela produção, e sorri com o rosto inteiro de te ouvir falar das tuas vivências cinematográficas, cúmplice do deslumbramento que te acomete.

A aparência latina fez com que eu fosse tomada por cubana. Isso ajudou a observar e viver tudo de dentro, sem me sentir uma criança ansiosa em um zoológico. Vivi as dificuldades deixadas pelo furacão, com comida escassa para o cubanos e preços altos para os turistas. O turismo é a principal fonte de divisas da ilha, e em conseqüência disso a primeira atividade a sofrer com qualquer turbulência, seja ela natural ou econômica.

Sim, Cuba possui desigualdades e falta de liberdade. Mas partindo do pressuposto de que igualdade e liberdade são uma ilusão (a primeira inalcançável, a segunda uma alucinação coletiva), estamos todos no mesmo barco. Lá quem manda é o governo, aqui os anunciantes. Escolha a sua escravidão.

Para nós, os privilegiados (???) do capitalismo, há fatos que surpreendem. A saúde, que SIM funciona, é para todos. A carne de gado que é racionada, e só quem tem uma dieta especial, autorizada pelo governo, pode consumi-la: gestantes ou portadores de doenças graves, como HIV ou câncer (ou quem é turista). Livros, os mais variados títulos (selecionados pelo governo), que espantosamente custam em média não mais que 4 dólares. As crianças, que não se vê nas ruas durante os horários de aula, e quando aparecem te pegam de surpresa com uma saudação espontânea e desconcertante, como “obrigado companheira, por apoiar nosso país socialista”.



Eu poderia redigir mais 100 páginas sobre Cuba. Mas tenho certeza de que ainda assim não conseguiria explicar o que é estar lá. Recomendo, para quem tem coragem de ver seus velhos conceitos desafiados e o coração aberto para repensá-los, que vá até a ilha. Só assim saberão do que estou falando.

Encerro com um poema de Mirta Aguirre, poetisa cubana. Um “regalo” de Yosi.

LECCIONES, NO
Lecciones, no.
Pero este chico archipiélago antillano
ha demostrado algo.
Y de algo debe servir a los demás.

De nadie es toda la verdad. Y, por supuesto,
nuestra tampoco.
Pero esta larga esmeralda marinera
algo encontró, algo ofrece,
algo muestra en la palma de la mano.

Y, no Irán otros
a aprovecharse del hallazgo?

Lecciones, no.
Pero aquí está, reciente como un nuevo
derrotero de las Indias,
la Isla Adelantada.
Y de algo ha de servir a los demás.
De algo.

Porto Alegre, 21 de novembro de 2008.
Besos.
Thais Fernandes.




































Fotos de autoria de Thais Fernandes.

1 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Por indicaçao de uma amiga, chegeui até aqui e quero parabenizá-la pelo teu blog em especial ao texto acima.
Tenho um amor leve à Cuba, sua história, sua gente.
e tuas consideraçoes vividas vem de encontro do que já pensava e o que sabia sobre a ilha.
peço licença para deixar o inicio de um texto meu visto sob a película, Habana Blues: "A lua prateada entra pela fresta de um teatro e ilumina os sonhos que nele foram depositados. Vem e faz companhia a uma guitarra solitária, em todas partes para onde quer que se vá, ela varre o pó da solidão."
Mais uma vez, parabens.
Fabiana

8.1.09

 

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