15.12.08

É preciso ter coragem pra dizer


Um vacilo e estou preso no olhar da menina atuadora, guerrilheira, metralhadora de plástico na mão, palavra bomba que me explode, embaralha os sentidos, enquanto a sigo na rua. Quase doem os estilhaços do tempo, de onde ela me acorda pro nosso país. Juntos, na praça, as pessoas e a história se encontram de novo.

Então Mariguella é parido sobre as pedras, é iluminado pelos raios de sol que driblam as árvores, iluminado pelos olhos curiosos, atentos e surpresos meus e dos outros, que nos encantamos com o Brasil que poderíamos ter sido, e nos desencantamos em saber que perdemos, quando os ditadores ditaram o silêncio. Opressão. O homem que pensa livre, bola de carne preso entre as grades do mundo-esfera-de-ferro, que roda e lhe quebra contra o piso do caminho. O grito lancinante se joga contra os ouvidos da multidão, que desperta assustada. O enredo da luta entre o gorila e a menina, entre o rato e os jovens que não desistem de ser e de querer coisas lindas como a liberdade e justas como ser vermelho ou diferente. A animalidade humana contra os humanos. Alegoria?

É amargo o processo de purificação. E longo. Parece que nunca aprendemos. Hoje, os atores são outros e interpretam a si próprios, diante da realidade e da polícia. Apanham os movimentos sociais que pedem mudanças. Contra eles e a reforma agrária, a brutalidade do Estado; contra eles e seus direitos, o Ministério Público reacionário e sua atuação repleta de farsas. Sobre a espinha torta da Justiça pesa a propriedade privada (mesmo que grileira e assassina).

Sim, como Mariguella, é comunista o povo que se levanta, o que não come e o que não janta, e contra o povo se levantam a mídia, os dinheiros e seus funcionários. “A Justiça tem preconceito contra pobres”, nos avisa o incomodado desembargador Lugon (ele também um insurreto que toma a palavra por descuido do sistema). E pobres articulados sabem quanto pesa a repressão do sistema, quanto machuca. Mas o enfrentam: nas palavras, nas ruas, nas artes.

Manipulam os homens-águia e os gorilas-homens espancam em nome dos homens-rato. Alegoria? O tom que sufocava sufoca: “Em todo o país repercute o som de uma nota só, tudo dó”, denuncia a poesia de Mariguella musicada e dolorosamente cantada pelos atuadores do Oi Nóis.


A época era sombria. Mas na rua, o teatro subversivo nos devolve tudo claro. E colorido: os tambores, as máscaras e a dança. Folclore e política, poesia e resistência, golpe e carnaval. Cavaquinhos, pandeiros, porta-bandeira, estandarte: “Depor podre poder”. E o berimbau pergunta pelo santo mestiço revolucionário que luta e sorri, briga e brinca. E ama visceralmente a pessoa e a liberdade.

Recriar os insurgentes é ressuscitá-los na retina de quem os vê. Mas também acender esses símbolos, jogá-los de novo na corrente sangüínea: seus gestos, seus atos. Reinventar suas canções de luta. E cantá-las.

“Fura-me os olhos para que eu não possa ver”, se mostra o poeta. “Arranca-me a língua para que eu não murmure um protesto sequer”, grita o poeta. E nos faz lembrar de uma geração dividida: parte capturada, parte alienada. Meus pais não sabiam o que acontecia naquela época. Zum, zum, zum, capoeira mata um. Tudo é velho e ainda é o mesmo: “Queremos advertir aqueles que torturam, espancam e matam, agora é olho por olho, dente por dente”, responderam os insubmissos. Agora, quiséramos responder nós, pelos movimentos sociais perseguidos, deslegitimados pela mídia corporativa e covarde, isolados em células, sufocados pelos novos ditadores.

Então o teatro engajado abre uma brecha no muro, uma clareira pra memória. “Os brasileiros estão diante de uma alternativa: ou resistem ao golpe ou se conformam com ele. Conformar-se é sofrer de joelhos”. Recupera. Atualiza. Protesta.

A multidão segue a ação. Nos bancos da praça, os pescoços compridos crescem; nos galhos da árvore-arquibancada, os ouvidos distantes crescem; entre a barreira de corpos à frente, os olhos que procuram espaço entre as frestas crescem. E vai crescendo a informação e a tensão, vai crescendo a consciência e a revolta. Tudo é razão. Tudo é sentimento.

Teatro para a massa, para todas as classes, para os que moram nas calçadas e para os que saem de gravata dos escritórios. “É bem louco”, se surpreende o cara de sapato lustroso; “melhor do que no cinema”, garante a criança estupefata; “estou assistindo um teatro grande aqui na rua”, explica ao telefone a mulher seduzida e atrasada.

O país se interroga, pede pra se reconstruir. É difícil.
Não se tem mais o chicote? Compra-se a delação. São negócios: deslocam, empobrecem, alienam. Mas mais fortes são os poderes do povo. MAIS FORTE!


O dever de todo revolucionário é fazer arte engajada, escancarar. É arte pra informar, pra fazer pensar. Arte pra emocionar, pra nos soltar das amarras.
Arte também é um jogo, coreografia do povo. Zum, zum, zum, capoeira mata um.

Então o transe da música nos abraça, e diz olhando na nossa cara que podemos. E nossos olhos molhados querem acreditar que o balão colorido é leve e leva pro alto e pra cima nossa fé e nossa força, nosso amor subversivo e nossa rebelde e inquieta esperança. Emoção, palmas.

A atriz chora junto com a personagem: “É preciso não ter medo. É preciso ter a coragem de dizer. Não ficar de joelhos. O homem deve ser livre”.

Jefferson, sobre a experiência de assistir à peça O Amargo Santo da Purificação

Fotos de Claudio Etges

0 Comentários:

Postar um comentário

<< Home