27.3.08

Arte engajada

Entrevista com Carlos Latuff
Por Jefferson Pinheiro e André de Oliveira, da Catarse – Coletivo de Comunicação
“O Chico Caruso, num debate aqui na UFRJ, disse que não sou cartunista, sou ativista. Que quero botar fogo no mundo, enquanto ele e outros cartunistas como Jaquar e essa turminha querem construir uma mídia democrática para o Brasil: rá, rá, rá”.
Antes mesmo da entrevista começar, Latuff já botava a boca no trombone. Chegamos até ele para conversar sobre cultura livre, como parte de uma reportagem especial para a TV Brasil. Queríamos a palavra do artista que tem sua obra exposta nos folhetos zapatistas no México, no muro dos campos de refugiados palestinos no Líbano, nas revistas dos sindicatos coreanos, nos livros bielo-russos sobre anarquismo e em tantas outras causas humanistas de peso na atualidade.
Era preciso saber como ele encara toda essa influência do seu trabalho militante sendo negociado somente pelo valor da imagem e das idéias que elas trazem. Numa troca de custo zero, de livre uso por todas as pessoas que as quiserem reproduzir. Mas ouvimos mais. Latuff, além de construir novos padrões de compartilhamento da cultura, assume o engajamento político como essência de sua arte.

Catarse - Então, qual a tua arte, o teu trabalho?
O papel da arte não é ser correia de transmissão de políticas reacionárias. A arte que vale a pena hoje é aquela que questiona exatamente esses modelos. Ela tem que te colocar na parede, tem de fazer você sentir. Não precisa ser o tempo toda engajada, mas falta arte engajada.


Comparativamente, por exemplo, à época da ditadura, que você tinha muitos artistas que davam a cara para bater, que produziam arte de contestação no cinema, no teatro, na poesia, no desenho, pintura, escultura. Mas hoje, de acordo com o pensamento vigente, não existe mais necessidade de se levantar, de reagir, de questionar porque nós estamos na democracia. “Resistir só faz sentido quando você tem tanque na rua...” É um ledo engano pensar a liberdade dessa forma, porque hoje se vive num sistema autoritário, de pensamento único, em que a mídia dita para você o que é ou não verdade.

Democracia é o que tem lá nos Estados Unidos, que só dois partidos centralizam a disputa? Democracia é o Paquistão, porque os Estados Unidos apóia o regime? O governo norte-americano ao mesmo tempo em que diz que Cuba é uma ditadura, não se refere como ditadura ao governo do Paquistão, porque é pró-americano. Dizem que o Hamas ganhou as eleições legítimas, na Palestina. Houve observadores internacionais... Mas eles são considerados terroristas. Depois do 11 de setembro foi foda, inverteu tudo.

Então nem tudo pode ser arte engajada, porque senão fica chato. E nem tudo pode ser entretenimento, porque fica vazio. É preciso ter a combinação das duas coisas, que é o que não vemos atualmente. Hoje, é só entretenimento, e nele já tem a questão ideológica colocada, só que de maneira subliminar ou lúdica. As pessoas não percebem. Normalmente, o cara que assiste Jack Bower ou Tropa de Elite é daquele tipo: “Ah, eu não gosto de política, eu não sou político”. Mas já está sendo cooptado sem saber.

Tu acreditas no poder de transformação da tua arte?
Eu questionava se a charge poderia ser, de fato, um agente transformador. Eu pensava: “Porra, mas é só um desenho na revista, num jornal, na internet. Um desenho não pára um míssel, não pára uma bala”. Mas aí, conversei com um cara, em Gaza: “Vem cá, faz diferença meu trabalho para você”? Falou que sim, que dava ânimo para eles, levantava a moral. Aí ele me fez lembrar que um dos heróis do povo palestino é um cartunista: Najir Al Ali. Então pensei: “Caralho, é isso. Realmente faz diferença. A arte levanta a moral quando você está na crise, é um tapa no ombro, é um afago na hora que você precisa”.

As pessoas precisam conhecer teu trabalho para que ele tenha esse efeito, e até Gaza tem um caminho... Qual é a relação que tens com tua produção, na questão da distribuição, do uso das imagens?
Antes da internet, eu não tinha qualquer perspectiva de ter o meu trabalho exibido nacionalmente ou fora do Brasil, porque eu dependeria, teria de me vender para um grande truste de comunicação. Mas com a internet ficou plenamente possível a distribuição dessas imagens.

Quando você cria uma página na internet, um blog, ou envia um desenho por e-mail para alguém, existe um fluxo, é o que se diz de processo viral. Eu achava que esse fluxo se restringia ao mundo virtual. Mas aí é que vem a mágica do negócio: o sujeito vê aquele desenho na internet e tem a possibilidade de imprimir, reproduzir numa publicação. Fiz uma charge sobre o atentado contra Benazir Butto, e saiu em jornal de grande circulação lá na Turquia. Eles pegaram na internet.

Assim como acontece com o Comitê de Solidariedade aos Zapatistas, que pegava os meus desenhos e reproduzia em posters, folheto, panfleto, numa camisa. Os comitês de solidariedade à Palestina, ao Iraque, fazem da mesma maneira. E, aí, fodeu, aí corre… É um processo multiplicador. Eu não tenho controle sobre isso. É domínio público. E é isso que me importa, pois essas imagens apresentam uma visão diferente da grande imprensa burguesa e corporativa. São aquelas verdades inconvenientes que eles não querem que sejam vistas, mas a internet consegue quebrar esses bloqueios midiáticos. Então, para mim, como artista engajado, o copyleft é a melhor solução.

Tu não estás preocupado se pessoas ganham dinheiro com essa liberdade de uso das imagens? Como é tua arte ser de domínio público, de se apropriarem dela, mesmo que tu não saibas pra quê?
Aí vem o ativismo. Só é possível fazer isso com vistas a uma questão político-social. Não é uma questão monetária que está em jogo. Tem gente que usa esses desenhos para fins da militância, têm outros que são para embolsar, mas isso não é importante para mim. Por exemplo, a imagem do Che Guevara usando um kafia, aquele lenço que se coloca na cabeça... Aquele desenho, independente de neguinho faturar ou não, o que importa é que ele esteja rodando, esteja vivo.
Ano passado me mandaram uma fotografia de um campo de refugiados palestinos no Líbano e tinha esse desenho (mostra a camiseta que está usando) na parede. É isso que eu quero, que esses desenhos façam parte do ideário, do imaginário das pessoas, porque eles têm uma mensagem positiva sobre os palestinos que você não vê em lugar nenhum, porque o senso comum sobre os palestinos é que são terroristas, assassinos, fundamentalistas. Então, para quebrar o senso comum a melhor maneira, a que toca mais profundamente, é através da arte.

Muita gente vai soltar foguetes quando eu bater as botas, vai abrir champagne no dia em que eu morrer. Se você procurar no Google pelo meu nome, você vai ver gente que me ama e que me odeia. Num site chamado Likudnik, em Israel, me ameaçaram dizendo que Israel já deveria ter cuidado de mim de um jeito ou de outro. Então, é sempre possível que alguém tome uma providência contra mim. Mas aí vem o exemplo do Najir Al Ali, que foi assassinado em Londres. O trabalho dele continua rodando o mundo, o tempo todo. Isso é a vitória maior.


E como é isso de também usar a arte para sobreviver?
Tenho um trabalho paralelo que faço junto à imprensa sindical, desde 1990. Se construí uma carreira, consegui viver até hoje, comer, foi graças à imprensa sindical. Com meus pontos de vista, jamais poderia trabalhar na grande imprensa. A não ser que eu fosse uma espécie de Arnaldo Jabor, que me vendesse. Tem muita gente que tem um passado comunista ou de esquerda, que diante das “circunstâncias”, do chamado do canto da sereia da mídia, se vende. Franklin Martins era guerrilheiro, agora acho que é até ministro, né?

Eu achava que ter um passado guerrilheiro era credencial para alguma coisa. Porra nenhuma! Que aí, os caras ficam velhos e viram a casaca fácil! Como se essa coisa da queda do muro fosse a desculpa que precisavam: “Não tem mais a disputa ideológica de esquerda e direita… os tempos mudaram… agora é democracia”. Aí, os caras abrem as pernas. E vai trabalhar onde? Na Globo, para de repente bater nos movimentos que, no passado, ele tinha afinidade ideológica.

E a gente ainda vive numa luta de classes…
Evidente! Dizer que não existe luta ideológica é conversa fiada. Agora, “tudo é mercado”. É muito ruim, hein! Se fosse assim, bastava você pagar para ter publicado na grande imprensa qualquer conteúdo. Mas não é assim que a banda toca. Em 1999 eu queria fazer uns outdoors de uma exposição de charges sobre violência policial, com o título “A Polícia Mata”. Eu tinha o dinheiro, mas a empresa de outdoor se recusou. “Ué, mas não é o mercado? Não tinha o dinheiro?” Essas censuras são permanentes, continuam. Não é oficial, como na época da ditadura, mas agora você tem a censura do mercado, que é baseada também em questões ideológicas.

Eu lembro que a CUT tinha um esquema para montar uma emissora de televisão, com estúdio, tudo pronto, mas não conseguia a concessão. Como é que se dá concessão de rádio e TV? É uma questão mercadológica? Nada disso, é uma questão essencialmente ideológica. Mas tem sempre esses arautos do mercado, do liberalismo dizendo: “Não, caiu o muro, agora não tem mais esquerda e direita”.

Aqui que não tem! Neguinho bate no Chavez 24 horas! É uníssono. Não é possível que num país enorme como o Brasil, de norte a sul, todas as emissoras só batam no Chavez. Não pode haver essa unanimidade, tem de ter um contraponto. Até nos EUA, que são aquele monte de reaça, você tem contraponto. Sobre a guerra do Iraque, sobre a questão palestina, em Israel você tem o contraponto.

E o que tu achas sobre essas pessoas que transgridem com o direito autoral para fazer circular mensagens?
Tem um novo filme do Brian de Palma chamado “Redacted”, que já está na internet, devidamente legendado. Eu baixei e assisti. O Brian de Palma não tem trajetória de militância, é essencialmente um diretor hollywoodiano, comercial. Rapaz, esse “Redacted” é uma porrada, um soco no estômago. Mostra os eventos que antecederam ao estupro de uma menina de 15 anos, a sua execução e da sua família por soldados americanos em Samara, no Iraque. Se você não sabe que foi o Brian de Palma que filmou aquilo, você vai dizer que é o Michael Moore ou qualquer ativista de esquerda, comunista.

Fernando Botero, que não é artista engajado, é um pintor de galerias, viu aquelas imagens de prisioneiros sendo abusados em Abu Ghraib e resolveu fazer uma série de pinturas que incomodam as pessoas, e elas não estão à venda. A maioria das galerias dos EUA se recusou a exibir as pinturas. Ele, que sempre encheu o rabo de dinheiro com aquelas figuras rechonchudas, teve seu chilique. Então, mesmo que o sujeito não seja um ativista, se como artista, de vez em quando, comprar essas brigas, lutas justas, já está bom. Que você não vê um puto de um artista fazer concerto pela Palestina. Diversas outras campanhas que você possa imaginar, eles fazem: Darfur, as baleias, aquecimento global, o caralho de asas, mas você nunca tem da Palestina.

Eu espero que os artistas sejam tocados, porque a situação está muito feia. As idéias fascistóides estão brotando do chão como erva daninha, estão ganhando espaço, sendo bem recebidas pelas pessoas. A grande mídia tem servido de alto-falante para essas coisas. É preciso voltar a incomodar, o que não está mais acontecendo. Está todo mundo abraçando o pensamento comum: todo mundo só quer o entretenimento… E a ideologia vai sendo colocada na nossa bunda no entretenimento, mas ninguém sente. É preciso que os artistas tenham um ímpeto guerrilheiro.

Carlos Latuff é carioca e tem 39 anos. Começou sua carreira em 1989, como ilustrador numa pequena agência de propaganda. Em 1990, passou a trabalhar para a imprensa sindical. Após assistir a um documentário sobre os zapatistas, transformou sua arte em ativismo político, desenhando em favor de diversas causas. Seus cartuns são conhecidos no mundo todo e geram polêmica, principalmente por suas críticas a Israel e Estados Unidos, em oposição às guerras promovidas por esses países no Iraque, Afeganistão e Palestina.

1 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Muito boa a colocação do Artista

Parabens pela sua coragem..

13.4.08

 

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