O Judiciário e a elite denunciados
O Judiciário, empenhado no RS em dissolver com movimentos sociais legítimos, sufocando a organização popular, tentando manter os pobres e trabalhadores desarticulados e enfraquecidos, o Judiciário, que reinaugura a opressão através de recursos jurídicos inconstitucionais, é alvo deste depoimento corajoso e dissonante, do Desembargador Federal Luiz Carlos de Castro Lugon.
Ele denuncia que é comum a postura preconceituosa e injusta dos juízes, que se fazem instrumento de uma elite da qual pertencem, para “perenizar” seus privilégios num sistema desumano. Este depoimento ocorreu no seminário Obtenção de Imóveis Rurais para a Reforma Agrária, promovido pelo INCRA/RS, em 14 de março de 2007. Mas parece que foi dado pensando no que acontece agora, quando o Conselho Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul decreta guerra ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra:
“A Constituição traz uma opção política devidamente explicitada, que é a busca de uma sociedade justa e solidária. ‘Lei nós temos’, diriam os romanos. E dentro dessa visão de sociedade justa e solidária, alguém poderia contrapor: 'Mas são conceitos abertos... ' Eu diria: a idéia de justiça até que sim, cada um pode imaginar ou acatar a justiça que queira, mas solidariedade é uma coisa bem concreta.
Uma sociedade solidária é uma sociedade que se propõe a um desenvolvimento comum, de mãos dadas. Não se pode pensar em solidariedade dentro de conceitos individualistas, egoísticos. Uma sociedade é isso, se propõe a um desenvolvimento integrado, compartilhado.
As reações que o INCRA encontra no desenvolvimento das suas funções, têm raízes fortemente ideológicas. Pra muita gente reforma agrária tem implicações com o comunismo. Nós ainda trazemos um caldo de cultura que nos foi impregnado em longos anos de pregação reacionária. E é muito difícil um desapego ao conceito antigo de propriedade: propriedade vista como um direito absoluto. Mas a propriedade vista como direito absoluto, ela esbarra com essa idéia de solidariedade.
Nós temos uma Constituição cidadã, que realmente mudou alguma coisa. A propriedade hoje deve cumprir uma função social. Este é um conceito dinâmico de propriedade e que traz uma forte carga obrigacional. Já não se concebe mais que o proprietário detenha a terra e cruze os braços, e não produza, e não contribua para a formação de riquezas, e não crie emprego, e permaneça absolutamente alheio aos grandes problemas que o cerca.
O proprietário hoje, não tem a propriedade apenas como privilégio, mas também como obrigação. Obrigação para com o país, para com a comunidade, com o próximo. É esta a idéia de propriedade ética, que deve ser constantemente pregada para que se possa realizar uma sociedade justa e solidária, que hoje o país clama, e clama de uma maneira extremamente notória, e dolorosamente notória.
Porque se nós pensarmos nas raízes do aumento da criminalidade, se nós pensarmos na quão conflituosa está se tornando esta sociedade, nós vamos ver que isso são apenas sintomas de um quadro geral de injustiça.
Hoje, nós temos convivendo universos imbricados, fundidos, coexistentes que não dialogam. Nós passamos pelas ruas, cruzando com pessoas em situação de miséria, com toda naturalidade, como se tivesse de ser assim.
Talvez, alguém já tenha estranhado e pense assim: 'Mas isso é discurso de um
juiz?' É discurso de um juiz. Felizmente foi para o passado aquela idéia do magistrado ideologicamente esterelizado, isento, sem uma cosmovisão jurídica e sem qualquer responsabilidade com relação ao que acontecia no país: 'Não, eu sou o juiz, eu me coloco fora da sociedade, apenas observo, só peso os problemas e julgo'. Não é assim. Nunca deveria ter sido assim, se é que foi em algum tempo. Porque essa ideologização nenhuma é mesmo, dizem os estudiosos do assunto, absolutamente impossível, porque até em cruzar os braços, está aí uma atitude conservadora, que é uma atitude política.
Qualquer um de nós, tal como o proprietário, tem no privilégio de existir também uma obrigação, também um ônus: a responsabilidade de ingerir para melhorar o mundo que nos cerca. Cada homem deve ser um elemento de mudança. E quando eu vejo uma estrutura que se distorceu até o ponto que só sabe dizer 'não', essa administração que se voltou contra o cidadão, ao invés de a favor, administração de que 'nós não estamos aqui pra fazer favor', que simplesmente nega e 'recorra quem quiser recorrer'. As instituições públicas são para servir ao público. Essa é a função, essa é a diretriz, essa é a postura ética que precisa hoje ser colocada. E, lamentavelmente, há um longo caldo de cultura do judiciário que homologa esse 'não'.
É preciso uma mudança ética. E quando eu falo em ética, eu não falo num sentido meramente deontológico (de estudos de princípios, fundamentos, sistemas de moral...), de uma série de preceitos a respeito daquilo que não se deve fazer. O que não se deve fazer nós todos sabemos. Falta alguém que diga o que nós devemos fazer. E nós devemos mudar esse país, antes que esse país nos mude.
Liga-se a televisão, estão lá as balas perdidas, os seqüestros relâmpagos, a desordem, a desorganização de um estado omisso, demissionário, que deixa espaço de poder pro primeiro que se aventure preenchê-lo. É difícil trabalhar dentro de um quadro em que a própria formação da elite traz mecanismos, traz sistemas de perenização, traz dispositivos de perenização no sistema, de modo que as diferenças sociais vão se espelhando.
Há pouco tempo, dentro de um congresso de juízes, nós éramos 123 juízes, havia apenas dois negros. Por que razão? Então essa tendência de manutenção do status quo, essa tendência das coisas ficarem do jeito em que estão, elas podem ser estudadas, podem ser diagnosticadas, denunciadas, porque esse medo que existe, ele se reflete fortemente nas decisões judiciais.
Eu tive colega de turma, dentro de um julgamento, que simplesmente disse que mutuário do BNH (Banco Nacional de Habitação) é um aproveitador do sistema, o que me obrigou a retrucar e dizer de pronto: 'O senhor alguma vez já foi mutuário de cooperativa de SFH (Sistema Financeiro de Habitação) de pé de morro?' Que conhecimento tem do sistema? E olha que nós estamos diante de contratos em que iterativamente (repetidamente) a jurisprudência já reconheceu patologias, distorções terríveis. São contratos em que a pessoa jamais consegue pagar o imóvel, são contratos em que chega ao fim, depois do último pagamento, a pessoa está devendo três vezes aquilo que pensou que estava comprando. Mas não são aproveitadores do sistema...
É fácil taxar os sem-terra de hordas. É simplismo dizer que os beneficiários do BNH são praticantes assíduos de fraude. De uma maneira geral, há quase uma ojeriza contra direito de pobre nesse país. A verdade é essa. E é preciso que nós olhemos para dentro de nós mesmos, que estudemos essas relações sociais com base em como elas estão sendo feitas. Qual é o modelo de país do futuro que nós queremos? Porque esse país de futuro vem de qualquer jeito, com maior ou menor dificuldade. Mas esta sociedade justa e solidária, ela se constrói.
O direito é como uma mola, que uma hora se distende, fatalmente se distende. Não há força que consiga segurar o progresso. Eu faço esse retrato porque são justas as críticas que fazem à quantas vezes nós, administração e judiciário, quantas vezes nós, de uma maneira terrível, trancamos as portas às reivindicações, às vezes por questão formal de processo, mas é preciso que nós realmente tenhamos um judiciário pra tornar realidade os direitos fundamentais garantidos na Constituição. Outra vez eu digo: leis nós temos.
Está lá prometido, garantido, não só a sociedade justa e solidária, não só a função social da propriedade, está lá o princípio da dignidade humana. E esse princípio da dignidade humana não convive com jogar pobre no meio da rua. Esse princípio da dignidade humana não convive com negar remédio pra pessoa que está em estágio de sofrimento ou em risco de vida, esse princípio da dignidade humana não convive com criança sem escola, e não convive com essa política de Estado mínimo. Digo mais, estado demissionário há que se cobrar sim. Há que se cobrar uma postura em que os reclamos da cidadania achem voz.
É fácil pro moço da televisão dizer assim: 'Ah, os bandidos estão atirando na polícia'. Que maniqueísmo é esse? Isso é filme de faroeste em que existe mocinho e bandido? Mantenham um sistema de egoísmo, mantenham um sistema individualista, deixem que o agricultor tenha a terra tomada pelo banco e vá engrossar as favelas, e não venham reclamar de bala perdida, de seqüestro relâmpago, de invasão de propriedade ou de qualquer espécie de violência. Quem quer uma sociedade justa e solidária? Existe essa vontade política?
Eu creio que já disse o suficiente a respeito da anima, da alma da legislação social. Isso não existe só no terreno agrário, é preciso que o judiciário acorde para o fato de que o direito tributário seja visto como um direito que nasceu para defender o contribuinte contra o estado, de que o direito previdenciário nasceu pra defender o beneficiário segurado também contra o estado. O estado não precisa quem o defenda porque ele tem auto-aplicabilidade, ele próprio vai lá e toma o que pensa que lhe pertence.
Eu registro a minha alegria de ver que existem instituições administrativas no Brasil (INCRA) harmonizadas com uma diretriz construtiva para um país melhor, dentro de um mundo melhor. Apraz-me muito ver que não somos somente nós a sonhar com este país a ser construído num trabalho cotidiano. E eu sonho e nós sonhamos este mundo melhor com a cara que ele realmente deva ter. E que este medo que se tem de solidariedade, e que este medo que se tem de um mundo compartilhado, que venha com a face que realmente deva ter... num Brasil novo e numa América Latina que nos olha hoje com olhos de índio pré-colombiano, que nos olha hoje com uma face idealista e construtiva perante os olhos assustados de uma elite individualista e alheia.
Eu lembro, por fim, a respeito desta insensibilidade e desse alheamento, de Maria Antonieta, quando ela disse: 'Não tem pão, por que não comem brioches?', sem perceber o que lhe aconteceria logo ali adiante, a cabeça rolando na guilhotina. É preciso que nós cuidemos para que tenhamos uma outra espécie de elite, outra formação de elite, que realmente reflita a sociedade brasileira, e não apenas uma minoria branca e privilegiada.
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