O ciclo de um combustível à base de bagaço de gente e caldo de sangue
Cristiano Navarro, Cimi MS para o Brasil de Fato
Em setembro de 2006, quando o menino Guarani Kaiowá de 15 anos, Pedro da Silva* anunciou a decisão de largar a escola para trabalhar no corte de cana, seu pai, o viúvo José da Silva*, se viu contrariado. Não queria que o filho, um bom aluno da 6ª série da escola Loide Bonfim, da terra indígena Tey Kue, sofresse da mesma sina que o afastou prematuramente, com 32 anos, do trabalho no campo por um desvio na coluna cervical.
Assim, seu José escondeu os documentos do filho para que ele não fosse passar 10 semanas cortando cana na Fazenda Santa Cândida, da Destilaria Centro Oeste Ltda (Dcoil), de propriedade do médico do trabalho Nelson Donadel.
Ignorando os conselhos do pai, o garoto acertou com um "cabeçante" indígena da aldeia de Dourados, identificado pelo nome de Jorge, o pagamento de R$ 1.200 reais para o trabalho de 70 dias. A falsificação da ficha de Pedro junto a Dcoil foi feita de forma grosseira. Além de receber o nome de Devir Fernandes e a idade de 24 anos, não constava na ficha a sua foto.
Um rapaz tímido e bastante esforçado, que freqüentava as aulas regularmente e, fora do horário escolar, fazia parte do projeto de criação de mudas de árvores para o reflorestamento da terra indígena Tey Kue ligado a Universidade Católica Dom Bosco. Com estes adjetivos, a irmã Anari Nantes, diretora da escola em que Pedro estudava, o descreve.
Apesar de ser ilegal, o aliciamento de menores indígenas com documentos falsificados para o trabalho no corte de cana-de-açúcar é comum no Mato Grosso do Sul. "A procura pela mão de obra [do trabalhador indígena] é muito grande, por seu bom desempenho e baixo custo. Com a grande demanda, os adolescentes são freqüentemente aliciados", atesta o procurador do Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul, Cícero Rufino.
Depois de prestar os primeiros 70 dias de trabalho, Pedro voltou para casa sem receber nada. O "cabeçante" informou que Pedro deveria voltar para a usina e trabalhar por mais um mês, até que o valor do pagamento atingisse a quantia de R$ 1.600,00 reais para receber o valor integral. No início de dezembro, Pedro voltou ao trabalho nas terras da usina do médico, Nelson Donadel.
Doze dias depois, na noite do dia 15 de dezembro de 2006, dentro de um caixão simples, que por debaixo ainda escorria sangue, o corpo de Pedro foi entregue de surpresa na casa de sua avó. Pedro havia sido degolado na manhã do mesmo dia dentro da usina onde trabalhava. Seu corpo foi encontrado por policiais militares por volta das 14 horas, sobre um descampado de chão queimado próximo a um monte de cana-de-açúcar que acabara de cortar, como consta em inquérito policial.
Mortos que andam
Mesmo com as evidências físicas do cadáver e a flagrante falsificação nos documentos apresentados pela usina, o boletim de ocorrência foi registrado na delegacia de Naviraí com idade e nome adulterados. Portanto, para a polícia quem estava morto não era Pedro, mas sim Devir Fernandes.
Na busca por pistas sobre o caso, nem a Fundação Nacional do Índio (Funai), nem a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), nem o Ministério Público do Trabalho tinham qualquer notificação da morte de Pedro, mesmo com o nome Devir Fernandes. Na região de Dourados (MS), a forma que a Funasa tem de registrar os óbitos é através do oferecimento gratuito do caixão às famílias dos falecidos. "É freqüente a troca de documentos e falta de registro de mortos", confirma o médico coordenador da Funasa em Dourados, Zelick Trajber.
Desde o enterro de Pedro, envolto de muita comoção na aldeia Jaguapiru, pairam inúmeras perguntas. A que mais aflige seu pai, José da Silva, é de uma objetividade cortante: "meu guri foi trabalhar vivo e voltou morto. Quero saber: quem vai responder por isso?".
Dias depois do funeral, após juntar provas como o resultado do exame de corpo delito que apontou a idade de 16 anos para a vítima e os depoimentos do autor confesso do crime e de testemunhas, seu José da Silva provou que de fato o corpo enterrado era de seu filho.
De posse destes documentos, o pai de Pedro foi à gerência da usina para pedir que lhe pagassem ao menos os R$ 2 mil reais pelo tempo de serviço do filho. Mas a reposta do gerente da usina, segundo o pai da vítima, foi categórica: "eles disseram que não devem nada para mim, que a quem deviam já pagaram. E que se eu quisesse qualquer dinheiro procurasse a justiça e a polícia". Ainda hoje seu José da Silva procura por alguma resposta para a sua pergunta.
Em português e castelhano, duas das três línguas faladas nessa região de fronteira com Paraguai, a palavra devir quer dizer futuro. Devir está morto, mas ele não morreu ainda.
Apesar de a polícia ter dado Devir Fernandes como morto, ele continua vivo. Devir, de carne e osso, mora na aldeia de dourados e trabalha de 12 a 14 horas por dia para transformar sangue, suor e cana-de-açúcar em álcool combustível para outra ponta da cadeia produtiva abastecer discursos políticos desenvolvimentistas e automóveis que rodam pelas ruas, estradas e avenidas com etiquetas ecologicamente corretas com o nome de total flex.
(colaborou André Campos, da Agência Repórter Brasil)
* nomes fictícios foram utilizados para não expor a vítima e a sua família.
Exploração de mão de obra indígena é premiada com isenção de impostos no MS
A Destilaria Centro Oeste LTDA (Dcoil) não é apenas uma empresa que permite o aliciamento de menores de idade para o trabalho exaustivo do corte de cana. Pouco mais de 4 meses após a morte do garoto Pedro, a mesma Dcoil foi flagrada, no dia 27 de março 2007, por uma diligência do Grupo Especial Móvel de Fiscalização do Ministério Público do Trabalho em uma ação em que 498 trabalhadores foram libertados, sendo que destes, 150 eram indígenas dos municípios de Amambai, Dourados e Coronel Sapucaia.
Em setembro de 2006, quando o menino Guarani Kaiowá de 15 anos, Pedro da Silva* anunciou a decisão de largar a escola para trabalhar no corte de cana, seu pai, o viúvo José da Silva*, se viu contrariado. Não queria que o filho, um bom aluno da 6ª série da escola Loide Bonfim, da terra indígena Tey Kue, sofresse da mesma sina que o afastou prematuramente, com 32 anos, do trabalho no campo por um desvio na coluna cervical.
Assim, seu José escondeu os documentos do filho para que ele não fosse passar 10 semanas cortando cana na Fazenda Santa Cândida, da Destilaria Centro Oeste Ltda (Dcoil), de propriedade do médico do trabalho Nelson Donadel.
Ignorando os conselhos do pai, o garoto acertou com um "cabeçante" indígena da aldeia de Dourados, identificado pelo nome de Jorge, o pagamento de R$ 1.200 reais para o trabalho de 70 dias. A falsificação da ficha de Pedro junto a Dcoil foi feita de forma grosseira. Além de receber o nome de Devir Fernandes e a idade de 24 anos, não constava na ficha a sua foto.
Um rapaz tímido e bastante esforçado, que freqüentava as aulas regularmente e, fora do horário escolar, fazia parte do projeto de criação de mudas de árvores para o reflorestamento da terra indígena Tey Kue ligado a Universidade Católica Dom Bosco. Com estes adjetivos, a irmã Anari Nantes, diretora da escola em que Pedro estudava, o descreve.
Apesar de ser ilegal, o aliciamento de menores indígenas com documentos falsificados para o trabalho no corte de cana-de-açúcar é comum no Mato Grosso do Sul. "A procura pela mão de obra [do trabalhador indígena] é muito grande, por seu bom desempenho e baixo custo. Com a grande demanda, os adolescentes são freqüentemente aliciados", atesta o procurador do Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul, Cícero Rufino.
Depois de prestar os primeiros 70 dias de trabalho, Pedro voltou para casa sem receber nada. O "cabeçante" informou que Pedro deveria voltar para a usina e trabalhar por mais um mês, até que o valor do pagamento atingisse a quantia de R$ 1.600,00 reais para receber o valor integral. No início de dezembro, Pedro voltou ao trabalho nas terras da usina do médico, Nelson Donadel.
Doze dias depois, na noite do dia 15 de dezembro de 2006, dentro de um caixão simples, que por debaixo ainda escorria sangue, o corpo de Pedro foi entregue de surpresa na casa de sua avó. Pedro havia sido degolado na manhã do mesmo dia dentro da usina onde trabalhava. Seu corpo foi encontrado por policiais militares por volta das 14 horas, sobre um descampado de chão queimado próximo a um monte de cana-de-açúcar que acabara de cortar, como consta em inquérito policial.
Mortos que andam
Mesmo com as evidências físicas do cadáver e a flagrante falsificação nos documentos apresentados pela usina, o boletim de ocorrência foi registrado na delegacia de Naviraí com idade e nome adulterados. Portanto, para a polícia quem estava morto não era Pedro, mas sim Devir Fernandes.
Na busca por pistas sobre o caso, nem a Fundação Nacional do Índio (Funai), nem a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), nem o Ministério Público do Trabalho tinham qualquer notificação da morte de Pedro, mesmo com o nome Devir Fernandes. Na região de Dourados (MS), a forma que a Funasa tem de registrar os óbitos é através do oferecimento gratuito do caixão às famílias dos falecidos. "É freqüente a troca de documentos e falta de registro de mortos", confirma o médico coordenador da Funasa em Dourados, Zelick Trajber.
Desde o enterro de Pedro, envolto de muita comoção na aldeia Jaguapiru, pairam inúmeras perguntas. A que mais aflige seu pai, José da Silva, é de uma objetividade cortante: "meu guri foi trabalhar vivo e voltou morto. Quero saber: quem vai responder por isso?".
Dias depois do funeral, após juntar provas como o resultado do exame de corpo delito que apontou a idade de 16 anos para a vítima e os depoimentos do autor confesso do crime e de testemunhas, seu José da Silva provou que de fato o corpo enterrado era de seu filho.
De posse destes documentos, o pai de Pedro foi à gerência da usina para pedir que lhe pagassem ao menos os R$ 2 mil reais pelo tempo de serviço do filho. Mas a reposta do gerente da usina, segundo o pai da vítima, foi categórica: "eles disseram que não devem nada para mim, que a quem deviam já pagaram. E que se eu quisesse qualquer dinheiro procurasse a justiça e a polícia". Ainda hoje seu José da Silva procura por alguma resposta para a sua pergunta.
Em português e castelhano, duas das três línguas faladas nessa região de fronteira com Paraguai, a palavra devir quer dizer futuro. Devir está morto, mas ele não morreu ainda.
Apesar de a polícia ter dado Devir Fernandes como morto, ele continua vivo. Devir, de carne e osso, mora na aldeia de dourados e trabalha de 12 a 14 horas por dia para transformar sangue, suor e cana-de-açúcar em álcool combustível para outra ponta da cadeia produtiva abastecer discursos políticos desenvolvimentistas e automóveis que rodam pelas ruas, estradas e avenidas com etiquetas ecologicamente corretas com o nome de total flex.
(colaborou André Campos, da Agência Repórter Brasil)
* nomes fictícios foram utilizados para não expor a vítima e a sua família.
Exploração de mão de obra indígena é premiada com isenção de impostos no MS
A Destilaria Centro Oeste LTDA (Dcoil) não é apenas uma empresa que permite o aliciamento de menores de idade para o trabalho exaustivo do corte de cana. Pouco mais de 4 meses após a morte do garoto Pedro, a mesma Dcoil foi flagrada, no dia 27 de março 2007, por uma diligência do Grupo Especial Móvel de Fiscalização do Ministério Público do Trabalho em uma ação em que 498 trabalhadores foram libertados, sendo que destes, 150 eram indígenas dos municípios de Amambai, Dourados e Coronel Sapucaia.
Todos os 150 estavam alojados num barracão sem janelas que comportava, no máximo, 90 pessoas, sendo que 30 dormiam no chão. Faltavam equipamentos de trabalho adequado e havia pagamentos atrasados.
"Entre os trabalhadores das usinas é altíssimo o índice de doenças respiratórias. São muitos os casos de tuberculose. Imagine: 50 pessoas dormindo em um barracão em condições deploráveis. Se um estiver contaminado pode contaminar todos os outros", alerta o coordenador da Funasa, Zelick.
Após a diligência, a Dcoil teve de pagar multa e assinou um termo de ajustamento de conduta no qual se compromete a melhorar a situação dos trabalhadores.
Empresas irmãs
A ocorrência de assassinato e a escravidão de trabalhadores indígenas não são delitos registrados somente nos limites da Dcoil. Segundo dados preliminares do relatório de violência 2006/2007 do Conselho Indigenista Missionário, em Mato Grosso do Sul, dos 53 assassinatos ocorridos no ano de 2007 com vítimas indígenas na Região de Dourados, três foram ocorreram dentro de usinas.
A Usina Debrasa, localizada município de Brasilândia, é outra empresa que tem em seu currículo assassinatos e trabalho degradante dentro de sua propriedade. Entre 2006 e 2007 foram dois assassinatos dentro dos limites da Debrasa. Além disso, em novembro último foram libertados 1.011 trabalhadores indígenas.
A Debrasa, uma das sete usinas da Companhia Brasileira de Açúcar e Álcool (CBAA) – pertencente ao grupo José Pessoa, um dos maiores do setor no país – é descrita pelos trabalhadores indígenas e pelo Ministério Público do trabalho como um "verdadeiro inferno".
Em decorrência da autuação, as empresas do grupo foram suspensas do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo e o empresário José Pessoa de Queiroz Bisneto foi afastado do Conselho Consultivo do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social.
Foram flagradas inúmeras irregularidades: como atrasos nos salários, comida de péssima qualidade e instalações totalmente inadequadas. No banheiro, não havia água, fezes estouravam o cano e os trabalhadores tomavam banho no rio.
"Além de toda a precariedade, logo ao lado da usina se constituíu o distrito Debrasa, onde se encontram bares, prostituição, consumo de drogas e todo tipo de exploração humana que você possa imaginar", relata o procurador Rufino.
Isenção de imposto
Como prêmio aos usineiros por sua "contribuição ao desenvolvimento" de Mato Grosso do Sul, o governador André Puccineli, em meados de dezembro último, concedeu isenção de 67% do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) para 44 usinas no Estado – 11 em funcionamento e outras 33 em construção.
Enquanto José da Silva luta para receber os R$ 2 mil reais da Usina Dcoil pelos dias trabalhados por seu filho, outras cifras saltam os olhos. Segundo o Sindicato dos Agentes Tributários do Mato Grosso do Sul, a isenção de ICMS deve diminuir em 20% a arrecadação do Estado, fazendo com que o governo deixe de arrecadar cerca de R$ 1 bilhão de reais. Devido à isenção dada às usinas de álcool, o Estado deixará de receber, em 2008, R$ 394 milhões.
Para este ano, o IBGE projeta um crescimento da área de plantio de cana-de-açúcar de pelo menos 30%, aumentando a área de 199,7 mil hectares, em 2007, para 260 mil hectares.
No caminho do "desenvolvimento"
Visando diminuir os impactos ambientais das queimadas para o corte da cana e a vergonhosa mancha do trabalho escravo, em agosto do ano passado a Câmara Municipal de Dourados aprovou projeto de lei que prevê o fim das queimadas em plantações de cana-de-açúcar até o ano de 2009. Assim, as usinas que estiverem nos limites do município deverão mecanizar a colheita dispensando a mão-de-obra indígena. Do dia para noite, pelo menos 2 mil trabalhadores indígenas sem terra deste município perderão seus postos de trabalho.
Na avaliação do vereador Elias Ishy (PT), que propôs a lei, o trabalho de cortador de cana é degradante e expõe o trabalhador a uma série de problemas de saúde. No entanto, nem o vereador, nem nenhum dos apoiadores da proposta respondem sobre o que farão tantos trabalhadores depois da mecanização da colheita de cana-de-açúcar.
A mudança da lei municipal vai de encontro ao interesse de transnacionais, como a estadunidense Cargill, a francesa Louis Dreyfus e a japonesa Mitsui, que chegam para investir no promissor mercado do álcool combustível, sem a intenção de ver seus nomes ligados ao trabalho escravo ou com a poluição do meio ambiente, e que, assim, devem pressionar pela mecanização da colheita.
Boca que mastiga vidas
O otimismo dos latifundiários e das transnacionais é a desesperança do povo Guarani Kaiowá. Quanto mais avançam a monocultura e a concentração fundiária, mais este povo vê distante suas terras, solução definitiva para os problemas da violência e extrema exploração.
Para além do lucro com as culturas da cana, do boi, da soja e do milho, outras facetas do uso da terra pelos latifundiários têm se revelado no Mato Grosso do Sul. Em recente matéria publicada pela agência de notícias sul matogrossense, Campo Grande News, o juiz federal Odilon de Oliveira classificou as atividades do agronegócio como sendo uma "lavanderia de dinheiro para o crime organizado". O dinheiro sujo, de atividades ilícitas, como o tráfico de drogas, seria "lavado" com falsos números de produtividade na pecuária e agricultura.
Segundo a assessoria de imprensa do juiz, só no Mato Grosso do Sul, 205 mil hectares estão sob ordem de desapropriação por servirem ao crime organizado para "lavagem" de dinheiro. Ou seja, o crime organizado no Estado teria cinco vezes mais terra do que os cerca de 40 mil Guarani Kaiowá – que possuem apenas 40 mil hectares.
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